No Brasil, o número de interrupções de gravidez mal sucedidas é 79 vezes maior que o de abortos realizados legalmente
O número de estupros já é maior do que o número de homicídios no Brasil. Em 2019, foram registradas 41.635 mortes violentas, segundo dados do índice nacional de homicídios do G1. Em contrapartida, houve 66.041 vítimas de estupro, de acordo com dados do 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra que a gravidez é uma das consequências mais comuns do estupro no Brasil: 7,1% dos casos notificados em 2011 resultaram em gravidez da vítima. Na lei 2.845, de 1940, está claro que aborto é considerado legal quando a gravidez é resultado de abuso sexual ou põe em risco a saúde da mulher. Além disso, em 2012, um julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) estabeleceu que é permitido interromper a gestação quando se nota que o feto é anencéfalo, ou seja, não possui cérebro.
De janeiro a junho deste ano, o Sistema Único de Saúde (SUS) fez 1.024 abortos legais em todo país. No mesmo período, foram 80.948 curetagens e aspirações realizadas – processos necessários para limpeza do útero após um aborto incompleto. Ou seja, o número de interrupções mal sucedidas foi 79 vezes maior que o de abortos realizados legalmente.
Mesmo dentro da lei, as mulheres podem sentir-se acuadas para procurar o procedimento legal oferecido pelo Estado. De acordo com a psicóloga perinatal Thalita Cupertino, as pressões psicológicas induzidas pela sociedade podem ser um dos fatores. “No Brasil, ainda é um tabu muito grande a mulher abortar. É considerado algo horrendo, há esta ideia de estar ‘matando um bebê’, porque idealizamos muito a gestação, temos esse delírio coletivo do que é ser mãe”, explica.
“Mas sendo a favor ou contra, o aborto ocorre, com muitos mais casos ilegais que aumentam o risco a vida da mulher – e temos só uma base do que acontece clandestinamente. Legalizando teríamos uma ideia muito real do porque essas mulheres procuram abortar: é por falta de recursos financeiros, falta de informação, idade? E com estatísticas reais podemos melhorar outras áreas da saúde e antecipar a necessidade do aborto, intervindo antes do fato ocorrer”, propõe Thalita.
Diante deste cenário, a legalização pode ser uma resposta, de acordo com a psicóloga. Porém, o acolhimento psicológico se torna uma necessidade na visão de Thalita.
Engravidei enquanto cursava a faculdade. Fiquei muito assustada, já que eu me preveni com métodos contraceptivos. Sem ter certeza se queria continuar ou não com a gravidez, meu namorado, que cursava medicina na época, me pressionou para realizar o aborto clandestinamente. Para minha sorte, a clínica que realizei o procedimento era de segurança, mas isso tudo graças aos privilégios por ele trabalhar na área. Nem todas as mulheres tiveram a mesma sorte que eu. Liz (fonte que preferiu não se identificar)
Contudo, Liz não contou para quase ninguém o que aconteceu com ela, muito por vergonha. Hoje, ela faz tratamento psicológico para entender melhor o ocorrido da época.
Aborto legalizado no Brasil
No Brasil, o aborto é permitido por lei em três situações: risco de vida à gestante, em casos de fetos anencéfalos (sem cérebro) e gravidez decorrente de estupro. A gestante que estiver em um desses três casos tem direito de realizar gratuitamente o aborto legal por meio do Sistema Único de Saúde – SUS.
Quando a gravidez põe em risco a vida da mulher ou o feto é anencéfalo, não há limite de semanas de gestação para realizar o aborto. Em caso de violência sexual, o tempo limite são 20 semanas de gestação, ou 22 caso o feto pesar menos de 500 gramas. A legislação não exige que a mulher apresente provas ou boletim de ocorrência que foi vítima de abuso sexual para realizar o aborto.
Fora dessas situações, interromper a gravidez é crime no Brasil. Fazer um aborto induzido pode acarretar em detenção de um a três anos para a mulher. A pessoa que realizou o procedimento pode pegar de um a quatro anos de prisão. Quando o aborto induzido é provocado sem o consentimento, quem o provocou pode pegar de três a dez anos de reclusão.
Porém, a criminalização não impede que 1 milhão de abortos induzidos ocorram todos os anos no Brasil, conforme dado compartilhado pelo Ministério da Saúde. De acordo com a médica obstetra e ginecologista Érika Mendonça, o aborto ilegal muitas vezes é realizado em condições precárias, expondo a mulher a riscos e complicações, podendo levar à morte ou afetar as gestações futuras.
“É impossível que a mulher tenha uma gravidez física e emocionalmente saudável se ela não concorda com aquela gestação, independentemente do motivo pela qual engravidou. É completamente inaceitável que mulheres mantenham gestações que não queiram”, expõe Érika. “A gestação é um impacto sobre a saúde apenas da mulher, então deve ser um direito dela decidir o que fazer com o próprio corpo. Precisamos manter esses abortos legais que protegem a vida da mulher”, afirma.
De acordo com o Ministério da Saúde, uma mulher morre a cada 2 dias por aborto inseguro. Ainda segundo o órgão, os procedimentos inseguros de interrupção voluntária da gravidez levam à hospitalização de mais de 250 mil mulheres por ano, cerca de 15 mil complicações e 5 mil internações de muita gravidade.
A obstetra explica que uma gravidez afeta a vida da mulher de diversas formas: financeiramente, fisicamente, com mudanças de corpo e hormonais, psicologicamente, entre outras. Dentro de uma gestação indesejada, essas mudanças podem ser ainda piores. “Em uma situação de vulnerabilidade, a gravidez não planejada pode acarretar problemas maiores. Principalmente quando envolve crianças, pois estas não conseguem adaptar-se emocionalmente e fisicamente para uma gravidez”, explica Érika.
Ilustração: Wagner Magalhães
Gravidez entre crianças e adolescentes
Segundo dados da da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), a gravidez na adolescência é um grave problema de saúde pública no Brasil. Aproximadamente 80% das vítimas de violência sexual são mulheres, mais de 50% tem menos de 13 anos. Enquanto a taxa mundial é estimada em 46 nascimentos para cada mil meninas entre 15 e 19 anos, no Brasil são 68,4 nascimentos para cada mil jovens.
De acordo com o Ministério da Saúde, ocorrem no Brasil, em média, seis internações diárias por aborto envolvendo meninas de 10 a 14 anos que engravidaram após serem estupradas.
Criança grávida é uma responsabilidade de todos, afirma a obstetra. “O aborto legal é algo pequeno a se discutir quando vemos as estatísticas de crianças grávidas. Temos que falar sobre todo o preparo do Estado para evitar este tipo de crime para que uma criança não tenha nem que recorrer ao pedido de um aborto legal. Temos que prevenir o que vem anteriormente, temos que prevenir o estupro de crianças e adolescentes”, exclama.
A maneira mais eficaz de prevenir a gestação entre crianças e adolescentes, de acordo com Érika, é implementação da educação sexual. “Há a necessidade de ensinar sobre métodos contraceptivos, empoderamento do corpo, reconhecer fases e ciclos, entendendo o que é o sexo e limites, para que a criança e/ou o adolescente identifique um abuso sexual”, justifica.
Engravidei na adolescência. Eu não me preveni, mas não estava preparada para ser mãe. Na época, procurei métodos abortivos caseiros e fiz. Um dia comecei a ter sangramento intenso e fui para o hospital. Foi muito difícil, todo o processo de limpeza do útero após o aborto. Eu me coloquei em risco, mas estava desesperada, porque não teria condições de manter uma gravidez. Eu faria de novo, só gostaria de fazer de forma legal, sem que minha saúde fosse prejudicada. Jane (fonte que preferiu não se identificar)
Mudanças na portaria
Em agosto, o Governo Federal publicou a Portaria 2.282/2020 do Ministério da Saúde que exige, em casos de indícios ou confirmação do crime de estupro, que o médico responsável pelo procedimento acione a polícia, preservando possíveis evidências materiais do crime. Para o procedimento de justificação e autorização da interrupção da gravidez em caso de estupro, a mulher deverá fazer um relato sobre a violência sofrida, com informações sobre local, dia e hora do fato, descrição do agressor e indicação de testemunhas, quando houver.
Em nova Portaria, 2.561/2020, publicada em setembro, com a assinatura do ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, foi mantida a previsão que autoridades policiais sejam comunicadas do caso, independentemente da vontade da vítima de registrar queixa ou identificar o agressor. No entanto, a palavra “obrigatória” foi retirada do trecho sobre a comunicação à polícia.
Outra mudança na portaria é a retirada do trecho que determinava que a equipe médica deveria informar sobre a possibilidade de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia, caso a gestante desejasse.
Especialistas dizem que essas etapas podem assustar as mulheres e afastá-las da realização do aborto legal. “Com sorte, retiraram o trecho da visualização do feto, porque, em caso de estupro, este bebê apenas significa um trauma para a mulher. Além de que, olhar a imagem do feto não significa que a mulher irá romantizar a gravidez e mudar de ideia”, comenta a psicóloga Thalita.
A profissional ainda questiona a finalidade da portaria. “Impedir que a mulher realize o aborto legal trará que bem? Caso ela desista e resolva continuar a gravidez, o que acontece depois? O Estado irá acompanhar este bebê? Supondo que ela não abra mão do filho naquele momento, futuramente pode ser que ela o abandone, ao notar que realmente não queria ser mãe”, argumenta.
Tipos de aborto
O aborto é um termo utilizado para designar a interrupção da gravidez antes do período perinatal, ou seja, quando ainda não há viabilidade do feto. O período perinatal corresponde ao período entre a 22ª semana de gestação, quando o feto apresenta a partir de 500 gramas, até a primeira semana de vida do bebê.
Existem três tipos de aborto. Aborto espontâneo, que é aquele que acontece sem a vontade da mulher. Pode ocorrer por uma série de fatores biológicos, psicológicos e sociais. Estima-se que 25% das gestações termine em aborto espontâneo, normalmente por má formação genética do embrião.
Há também o aborto induzido seguro, que acontece pelo uso de remédios abortivos ou por métodos cirúrgicos com o devido cuidado médico. É considerado, pela Organização Mundial da Saúde (OMS), uma forma segura de abortar quando é realizado nas circunstâncias por eles indicadas: feito por médicos ou médicas experientes e com os recursos materiais necessários para o procedimento.
O último é o aborto induzido não seguro, aquele feito pela própria mulher, sem orientação médica ou de origem duvidosa ou quando ele é realizado em clínicas clandestinas – muitas vezes com profissionais sem preparo e/ou com materiais e medicamentos defeituosos.
Hospitais que oferecem aborto legal no Brasil
Qualquer hospital que ofereça serviços de ginecologia e obstetrícia deve ter equipamento adequado e equipe treinada para realizar aborto legal. Entretanto, muitos serviços ainda se recusam a realizar o procedimento. De acordo com o Mapa Aborto Legal, apenas 42 hospitais seguem realizando o aborto legal durante a pandemia.
Em Santa Catarina os hospitais que realizam o procedimento legalmente são: Hospital Universitário Polydoro Ernani de São Thiago, em Florianópolis; o Hospital Municipal Ruth Cardoso, em Balneário Camboriú; e a Maternidade Darcy Vargas, em Joinville.
Para saber outros locais que oferecem o serviço acesse: mapaabortolegal.org.
Ilustração: Revista AzMina
Ilustração da capa: Ana Persona
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